quarta-feira, outubro 21, 2009

Nos bastidores da história - parte II: Noé

Noé era um cara sagaz.
Neto de Matusalém, sempre foi um cara conversador e boa praça.
Ainda na flor dos seus 500 anos de idade (naquela época as pessoas viviam mais, afinal os agrotóxicos ainda não haviam sido inventados) começou a trabalhar com obras públicas.
E foi numa tarde ensolarada que ele chamou um de seus amigos empreiteiros até sua casa, a fim de tratar de negócios.

- Grande Nonô malvadeza!
- Fala, peixe! Tudo pela boa? Jafé! Vai trazer uma gelada pro papai, que o assunto é importante.
- Tudo em riba, Noé, meu velho! E qual é a da vez?
- Então, camarada, te chamei pra conversar sobre uma obra aí, que eu descolei pra gente... Coisa fina.
- Licitação? Mesmo esquema de sempre? Já tem mais um CNPJ pra fechar três cotações?
- Claro! E já tá tudo redondo, no esquema. Eu mesmo assino o projeto e a gente recebe a primeira parcela no começo do mês que vem. Teus dez purça tão garantidos, como de praxe.
- Aí eu senti firmeza, Noé! Tamo junto. E qual é a obra dessa vez?
- Um barco.
- Como?
- Um barco. Aquela coisa que bóia na água, com coisas em cima, saca?

A surpresa era completamente compreensível, já que as obras de Noé eram, até então, relativamente normais. Com exceção de um portal enorme construído entrada da cidade, de gosto duvidoso, feito de pedra, mas a preço de ouro. No mais, foram apenas alguns calçamentos de qualidade duvidosa, um puxadinho na prefeitura e outras tantas desnecessidades de alta importância para a administração pública.
E assim, a conversa continuou no seu rumo normal:

- Cacete, hein Noé! Agora você se superou. Desculpe perguntar, mas o que diabos vamos fazer com um barco aqui? Um pouquinho longe da água, não?
- Fique frio, que tá tudo no projeto. O cliente já deu o sinal verde. Agora é só esquentar a papelada.
- Tá certo, então, né... E de que tamanho de barco estamos falando?
- Um puta barco. Na real, é um tipo de zoológico flutuante. Precisa espaço pra tudo quanto é bicho.
- Você tá de sacanagem!
- Não tô. É obra faraônica, meu chapa... Vamos precisar engenheiros, veterinários, e tudo quanto é tipo de gente. Tudo cargo comissionado, no esquema de sempre, claro. Depois dessa a gente se aposenta, pode botar fé.
- Só você mesmo, hein... E quantos bichos precisam entrar nessa merda?
- Todos.
- Como?
- Tá surdo, porra? Todos. Um casal de cada tipo.
- Caralho, Noé... Não sei da onde você arruma essas boiadas, hein...
- Esse cliente é foda, peixe. Você vai ver só... O cara é ponta firme. Garantiu que vai alagar tudo...
- Eu conheço a figura?
- Acho que sim. É o tipo do cara que está em todos os lugares, sabe de tudo, vê tudo, saca?
- Saquei. Acho que até sei quem é. Esse sujeito dá nó em pingo d’água. Não tem tempo ruim pro cara.
- Tô sabendo... E é meu chegado. E você sabe, né... Tá comigo, tá com Deus... E aí? Tá dentro da parada, então?
- Certeza, bicho. Tamo junto.
- Tamo junto, então.

E foi assim que a grande obra começou.
Todos queriam participar. Afinal, o preço do metro cúbico da madeira inflacionou subitamente, a importação de animais ganhou incentivos fiscais inéditos e engenheiros navais nunca foram tão bem pagos antes.
A maioria não acreditava que o tal barco fosse ter alguma serventia, mas mesmo assim queria levar algum.
E a obra seguia às mil maravilhas, até que, já no final do projeto, o pessoal começou a ficar preocupado...
Foi então que um dos mestres de obra criou coragem e foi conversar com Noé:

- Noé, to preocupado... E se não chover? Vai ficar feio pra gente... E eu sei que a última parcela a financeira só ficou de liberar se começar a alagar tudo, bicho...
- Vai chover sim, eu dou um jeito. Afinal, tenho meus contatos... É coisa de um telefonema.
- Tudo no esquema?
- Tudo no esquema.
- Então fechou. Vou tranqüilizar a galera. Valeu, Nonô!
- Valeu, peixe! Pode tocar a pau na obra, que eu garanto o acerto do final.

O que mais intrigava Noé era que, mesmo com a passagem já comprada para as Ilhas Caimã, caso tudo desse errado, ele estranhamente acreditava que tudo aquilo ia realmente alagar em breve.
E ali, sentado na soleira da porta do escritório de projetos, ele sentiu o alívio das primeiras gotas de chuva enquanto via o mestre de obras voltando num andar tranqüilo.
Porém, não conseguia parar de pensar:
Como será que essa história seria contada dali a alguns mil anos?

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segunda-feira, outubro 19, 2009

Quer fumar quanto?

Esta segunda-feira, além dos itens de série típicos, como cansaço, céu cinza e mau humor, trouxe também, como acessórios de luxo, uma dor de garganta regada à própolis e um atraso no trabalho por conta do horário de verão.
Uma segunda-feira ideal para, ao final da labuta cotidiana, se tomar uma boa cachaça mineira ou se suicidar. Na dúvida, fui de Boazinha.
Segunda-feira, aliás, que antecedeu um sábado dedicado ao obscuro estudo dos conceitos subjetivos da subjetividade contida em si mesma. Subjetivamente falando, claro.
O evento, de caráter interestadual, tomou parte num dos estabelecimentos mais contundentes da capital paranaense: O Schwarzwald, que por motivos óbvios (principalmente a partir do terceiro ou quarto submarino), é conhecido como ‘Bar do Alemão’. Fica bem ali no meio do contraditório Largo da Ordem, não tem como errar.
Entre os diversos temas completamente aleatórios e extremamente pertinentes, discutiu-se também sobre a nova onda de proibição alucinada, benchmark da inquisição espanhola, que ocorre aos poucos, sorrateiramente, na ala curitibana do grande hospício chamado ‘mundo globalizado’.
Logo após a famigerada ‘Lei Seca’, o despropósito mais recente é a tal lei ‘anti-fumo’.
Áreas de fumantes serão, daqui a alguns meses, sumariamente extintas da capital paranaense.
Restarão como locais (com teto) para a prática desta modalidade apenas as tabacarias, os terreiros de umbanda, e os humildes lares dos fumantes, estes miseráveis.
Até aí tudo bem.
Afinal não estranharia se, pelo princípio da concisão, parte das leis em vigor fosse agrupada em apenas uma sentença, que seria algo como “É proibido se divertir” ou similar.
Ou ainda, de forma mais abrangente, que o princípio da legalidade fosse invertido, criando-se uma lista das práticas legais e presumindo-se a ilegalidade das demais por simples praticidade.
Enfim, a estupidez humana não me assusta mais. O que ainda me assusta é esse clima de ingenuidade coletiva que paira no ar.
São as discussões públicas acaloradas sobre temas sem pertinência real.
Explico com um exemplo:
A antiga lei municipal que dispunha sobre os locais de fumo era efetivamente cumprida?
O texto da lei antiga era ineficaz ou insuficiente claro a fim de proteger os não-fumantes do martírio da fumaça do cigarro?
A nova lei, ainda mais rígida aos fumantes, estes degenerados, será efetivamente cumprida?
Arriscaria dizer que as respostas seriam, respectivamente, não, não e não.
Posto isso, a única explicação plausível é que a idéia seja justamente super dimensionar a proibição do texto legal, já antevendo que o seu cumprimento será pífio.
Algo como obrigar sua filha a usar burca e não se aproximar de qualquer homem até os trinta e cinco anos, na esperança que ela ao menos não vire prostituta aos dezoito.
E foi com base nestes sólidos argumentos que, sob os auspícios de uma noite de sábado, fizemos um protesto nebuloso.
Num momento épico, já um pouco exaltados pelo fluxo das canecas, fumantes e não fumantes uniram-se, cada qual ao seu modo, para fumar como se não houvesse amanhã.
O cigarro escolhido foi um mentolado de embalagem bonita, pelo belo design da embalagem e por seus efeitos expectorantes, notoriamente benéficos à saúde, ou não.
Entre a penumbra esfumaçada do ambiente, era possível distinguir vários estilos de fumar, que iam desde o ‘estilo gerencial’, jeitoso e sóbrio (nem tão sóbrio), até o estilo ‘Preto Velho’, conhecido internacionalmente como ‘Old black guy smoking style’. Este último pouco elegante, porém extremamente eficiente no propósito de espalhar fumaça no ambiente.
E foi assim que, de forma bizarra e por alguns poucos instantes de uma noite de sábado, a fumaça incomodou, espantou os demônios da imbecilidade e trouxe um leve gosto da boa e velha liberdade.
A mesma liberdade que, segundo Lênin e a prefeitura municipal, de tão preciosa que é, deve ser cuidadosamente racionada.

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