quarta-feira, outubro 17, 2007

O imprestável

Maldito despertador.
Movido pela rotina, já havia "pseudo-acordado" há uns dez minutos.
Entretanto, ainda residia em mim uma leve esperança: Quiçá ele (o despertador) não houvesse me notado ali, e ao menos por hoje, se calasse.
Meras divagações. Obstinado e impassível aos sofrimentos humanos, ele tocou.
Começava mais um dia.
É surpreendente como um amanhecer abrupto me torna imprestável a ponto de maldizer um objeto inanimado.
Sinceramente, não consigo entender como alguém pode começar bem um novo dia desta forma tão algoz: Acordando.
Os que já conviveram (ou convivem) com este que escreve estas mal traçadas, provavelmente já tiveram a oportunidade de constatar esse curioso fato: Via de regra, acordo de mau-humor.
Entretanto, após este clímax de baixo-astral que é o início do despertar, vou aprimorando o ânimo em progressão geométrica, e em menos de uma hora já é possível até esboçar um sorriso.
Penso eu, que todos devam ter seus momentos de imprestabilidade. Uma espécie de direito tácito universal de ser imprestável.
Mas há aqueles que abusam deste direito. São estes, os verdadeiros flagelos da humanidade.
Nas aulas de religião da época de colégio, me ensinavam que todos têm algum dom especial, entregue em mãos pelo próprio criador para cada um de nós.
Assim, alguns descobririam seus respectivos dons e seriam felizes, e outros não descobririam e seriam infelizes. Logo, caberia aos homens apenas desvendar seus próprios dons ao longo da vida.
Balela. Empiricamente, constatei que neste mundo há muita gente imprestável. Gente que não faria a menor falta no mundo. Nem ao mesmo para os próprios.
Porque, por definição, o verdadeiro imprestável nunca cria nada de bom. Não presta pra isso.
Ao imprestável são desconhecidos os conceitos de genialidade ou brilhantismo.
Porém é preciso não confundir o imprestável com o preguiçoso.
O preguiçoso pode não produzir nada durante a vida toda. Mas é possível, e até muito comum, que este consuma seu tempo com ócio criativo, sono, ou apenas aproveitando seus minguados dias na Terra chafurdando em meio aos prazeres mundanos. Sendo este último caso uma opção extremamente louvável.
Pois bem. Para melhor entendimento, recorramos ao consagrado beispiel*, o qual os alemães tanto gostam.
Digamos que a "escala de imprestabilidade" comece no cidadão de origem humilde que trabalhou muito a vida toda, nunca se importou com luxo ou ostentação, e prezando os estudos e a decência conseguiu mudar de vida, ajudar sua família e criar seus filhos para que estes também sejam bons cidadãos. No máximo, sonegou algum imposto. Afinal de contas, os leoninos que me perdoem, mas aí já seria demais...
Na outra ponta da escala, estaria o cidadão que apesar de ter algum recurso, oriundo das picaretagens mais sórdidas, consome tudo com a ostentação extrema (leia-se 'ostentação', e não 'prazer'), trata tudo o que vê como se fosse lixo, e ainda por cima abusa sexualmente dos próprios filhos, ceifando destes qualquer possibilidade de algum dia mostrar um sorriso sincero e puro. E o pior: age assim sem ao menos saber por quê.
É imprescindível que se conste também, que o bronze não faz o imprestável. Existem bilionários e mendigos imprestáveis, assim como existem bilionários e mendigos de ótima índole. Uma coisa não se relaciona à outra, de forma alguma. A imprestabilidade não vê diferenças em cor, sexo, raça, religião ou posição social.
De tal modo, por culpa de imprestáveis, existem regras. Por culpa de imprestáveis, a anarquia é mera ilusão.
Os motivos que levam o cidadão a trilhar o caminho da total imprestabilidade? Sinceramente, penso que seria algum defeito congênito ou adquirido, no cérebro do sujeito.
Quem sabe se algum dia, algum exame possa detectar o defeito logo no nascimento, e já tratá-lo de antemão. Ou então, caso não haja tratamento possível, poder-se-ia ao menos segregá-los numa colônia ilhada, especialmente desenvolvida para imprestáveis, de modo a aproveitar o desfecho em algum estudo antropológico. Quem sabe?
Enquanto a ciência não chega a este ponto, tento evitar ao máximo o contato com imprestáveis, e vou levando essa vida como posso, lamentando o lamentável, suportando o suportável, e na medida do possível, rindo de tudo isso.

* Significa 'exemplo' em alemão. Procurando pela palavra 'exemplo' no google, tive 38,3 milhões de resultados, contra 84,5 milhões para 'beispiel'. Isso, tendo em vista que existem cerca de 128 milhões de pessoas no mundo falando alemão, e 230 milhões falando português (vide wikipedia). Mas também... Isso não prova nada. Não sei por que perco meu tempo com esse tipo de análise... Lamentável.