segunda-feira, outubro 20, 2008

A incrível história de Jó

Por entre arrabaldes duma terra longínqua, muito pra lá das bandas de Campo Magro, existia uma cidade.
E nas terras deste remoto município, relativamente bem estruturado, com uma igreja, um bar, uma farmácia, um terreiro, uma agência dos correios e três zonas, havia duas grandes fazendas, cujas propriedades eram tidas por dois grandes fazendeiros, notoriamente conhecidos pelas alcunhas de “seu Gorgo” e “seu Theodoro”.
Estes dois fazendeiros, quiçá pelas extensas sombras de suas respectivas posses, eram os indivíduos que resguardavam maior grau hierárquico dentre todos os residentes daquelas bandas. Aliás, todos ali trabalhavam para um ou para outro, muito embora alguns fizessem bicos aqui e também acolá.
Logo após os dois “coronéis” vinham, nesta exata ordem, o prefeito, o padre, o farmacêutico, e por fim, empatados em último lugar, o pai de santo e o delegado. Os demais não tinham qualquer poder decisório ou opinião, como bons cordeiros que eram.
Os nomes dos fazendeiros, por óbvio, não eram estes.
“Seu Gorgo”, na realidade, chamava-se Samael Gorgowski. Por um deslize do cartorário, como se pode supor, um “u” foi trocado por um segundo “a” muito embora algumas vezes, disfarçada de acaso, a vida imite a arte.
Samael era filho bastardo dum falecido fazendeiro polaco que fez fortuna por ali, e se tornou famoso e temido por toda a região. Seu pai, como todo bom polaco, acabou se engraçando com uma mulata bem feita de corpo e de rebolado capcioso, que nove meses depois pariu o jovem rebento.
Como o pai de “seu Gorgo” não teve outros filhos com sua esposa legítima, que acabou por se suicidar ainda nova, vítima de duma crise depressiva, decidiu por se juntar de vez com a mulata, que, afinal de contas, era bem feita de corpo e tinha um rebolado capcioso.
E foi assim que “seu Gorgo”, filho único (até que se prove o contrário), acabou herdando todas as terras da parte baixa da cidade, já que as terras da parte alta eram de seu grande rival, “seu Theodoro”.
Este, por sua vez, chamava-se Theodoro Shadday dos Santos, e era fruto duma tradicionalíssima família da região, de grande prestígio e poder.
Sempre foi grande amigo do pároco da cidade, a quem já havia tirado de inúmeras enrascadas, nas quais este freqüentemente se envolvia em virtude de sua preferência sexual por garotas de poucas primaveras. Theodoro sempre ameaçava não mais socorrer o padre caso a situação se repetisse, mas, no frigir dos ovos, acabava cedendo aos pedidos do amigo. Tinha este defeito: Sempre acabava perdoando a todos.
Como se pode imaginar em tais circunstâncias, muito embora não fossem concorrentes na lavoura, já que na parte baixa plantava-se basicamente fumo, cevada e cana, enquanto na parte alta cultivavam-se flores, trigo e verduras orgânicas, os dois fazendeiros eram notórios rivais. Assim, sempre que tinham oportunidade para tanto, alimentavam ainda mais a tal rixa, que já vinha de tempos idos.
Como de praxe aos fazendeiros, em tempos de entre safra ou não (com a diferença que apenas a primeira situação configura-se como pretexto), ambos gostavam muito de enxugar uma ou outra cerveja, acompanhada de uma ou outra cachaça mineira, seguida dum ou outro copo de uísque escocês, e assim sucessivamente, até tontear.
E foi durante uma dessas prosas, sob certa luz celestial que se travestia num raiar insistente ao lado leste do boteco da cidade, que surgiu nosso protagonista, cuja graça era Jó de Uz Barbosa da Silva.
Um nome estranho, que pode ser explicado por uma série de infortúnios: “Jó” veio duma vã tentativa de “José” aliada a grandes dificuldades de escrita e acentuação de palavras, “de Uz” veio da vontade materna de colocar Deus no meio do nome da criança somada a um cartorário ateu e alcoólatra, “Barbosa” veio como homenagem ao goleiro recém convocado para a seleção de 50, e, por fim, “da Silva” veio da própria estirpe.
Jó era um camarada esforçado. Na realidade, valia-se do esforço para aliviar um pouco sua carência de perspicácia.
De qualquer forma, ao menos em termos de esforço, Jó era o supra-sumo. Fazia o trabalho que precisasse ser feito, desde cortar a grama do sobrado do “seu Theodoro” até cuidar de seus investimentos obscuros em alguns bancos uruguaios, aos quais fazia papel de laranja.
Além do esforço descomunal, Jó tinha ainda outra grande virtude, ao menos da perspectiva de seu patrão: A lealdade.
E foi essa lealdade o começo de toda encrenca.
Naquele amanhecer preguiçoso, que iluminava os dois fazendeiros já bem alterados pelas artimanhas do álcool, travou-se o seguinte diálogo, iniciado pelo “Seu Gorgo”, proprietário de todas as terras da parte baixa:

- Theodoro, seu safado... E aquele guri, como é mesmo? O Jó!
- Sim, o Jó! Guri bom! O que tem ele, seu mal acabado?
- Pode falar a verdade aqui pro seu compadre... Ali têm, hein? Casa, carro, conta no exterior... Quando a esmola é demais, até o Santo desconfia...
- Que nada! Aquele guri vale ouro! Nesse dá pra confiar de olho fechado...
- Não fale besteira.
- Besteira por quê?
- Cada um tem seu preço. E com ele não é diferente.
- Todos têm seu preço, menos ele. O Jó é guri bom de verdade! Por esse eu ponho a mão no fogo!
- Vale uma caixinha?
- De cerveja?
- Não temos mais idade pra isso, companheiro... Johnny. Azul.
- Fechado, mas já aviso que vai perder.
- Capaz! Até o final da semana ele está trabalhando na minha fazenda. Pode escrever.
- Essa eu quero ver... Mais um gole desse aqui?
- Completa aí, que aqui tem fígado!

Como não poderia deixar de ser, naquele mesmo dia, “seu Gorgo” foi ter com o jovem Jó, que recusou as mais irrecusáveis propostas de emprego, tudo em lealdade ao velho Theodoro, que tanto o havia ajudado num recente passado de vacas ainda mais magras.
O velho Samael, famoso pela falta de estribeiras, ficou puto. Mas, como bom rival que era, pagou a caixa de uísque, mesmo que de má vontade.
Theodoro, velho bonachão, abriu a primeira garrafa ali mesmo no bar e ofereceu um trago ao colega perdedor, que aceitou sem maiores mágoas, e, após uns goles, arrematou:

- Desta vez perdi sim, mas fui precipitado.
- Como assim, precipitado?
- o Jó só é leal a você em troca de tudo que você deu a ele. Uma simples questão de troca de favores... Se você não tivesse dado a ele aquela casinha na beira da avenida, o carro da fazenda e os extras no ordenado, ele nunca continuaria com você.
- Que nada... Esse guri é bom de verdade. E aposto nisso. Aliás, estou percebendo que alguém quer perder mais uísque...
- Façamos o seguinte, então: Você dá um gelo no otário, e eu faço a proposta de emprego mais uma vez.
- Ah... Não chame o guri de otário. Ele é meio bobo, concordo, mas é gente fina. No mais, negócio fechado. Mas dessa vez vou querer um Royal Salute, pra variar um pouco...

E assim a tal brincadeirinha sádica foi tomando proporções cada vez maiores.
Para começar, Theodoro tirou de Jó o carro na fazenda e os extras. Não foi suficiente. Jó continuou leal, e, de quebra, Theodoro capitalizou mais uma caixinha de uísque.
No decorrer das apostas, Theodoro foi ganhando mais e mais caixas de uísque, enquanto Jó ia vendo seu mundo desmoronar...
Em poucas semanas, Jó perdeu a casa, o vale-refeição, o plano de saúde, e, por fim, os filhos: Misteriosamente, sua ex-mulher contratou o melhor e mais caro advogado da região e conseguiu a guarda permanente dos seus cinco rebentos. Pra piorar, foi morar com eles no México. Junto, inclusive, com o tal advogado. Estavam tendo um caso. Jó desesperou-se. Não havia mais nada a perder.
No último encontro entre os dois fazendeiros, quando já não havia mais o que se tirar de Jó, os mesmos travaram um colóquio breve, que foi iniciado por Theodoro, que falou num tom zombeteiro:

- Pois então, Samael, meu velho colega... Você tentou de todas as formas, mas não conseguiu corromper o jovem Jó. Como prêmio, dei a ele o cargo de meu assistente financeiro, as senhas das minhas contas bancárias, um salário ainda mais polpudo, uma nova casa, um novo carro, e, como não havia como devolver esposa e filhos, mandei entregar na casa dele aquela puta argentina de dezoito anos que acabou de chegar lá na zona da Rua das Carmelitas... Guri bom! Merece tudo isso e muito mais! E minha caixa de uísque, esqueceu?
- Como assim?? Quem me deve uísque é você!! Ontem mesmo eu contratei o Jó, e adiantei a ele dois anos de salário! Ainda passei pro nome dele todas as minhas economias do caixa dois, para um investimento altamente sigiloso no Uruguai, que ele mesmo disse que você também fazia...

Os dois, segundos depois de perceber o ocorrido, ainda tiveram tempo de bradar em uníssono:
- Filha da puta!

E foi assim que Jó, após um surto de sagacidade, passou a se chamar Barrabás e aproveitou o resto de seus dias vivendo de rendas em praias paradisíacas do Caribe, chafurdando num mundo mágico cheio de drinks coloridos em frutas tropicais, modelos seminuas em danças sensuais ao som de músicas típicas caribenhas, e tantas outras mordomias, típicas de armadilhas para turistas. Mas, enfim, dinheiro não era mais problema: Agora era solução.
Jó, como se pode imaginar, viveu feliz para sempre.
As finanças dos fazendeiros não suportaram o golpe, e ambos tiverem que vender suas fazendas a uma grande cooperativa, a fim de pagarem suas dívidas.
As últimas informações sobre Theodoro vieram de um alemão bigodudo com cara de louco, que disse ele estava morto.
Samael entrou pra política, e de uns tempos pra cá arrumou um trabalho na OPEP e começou a fazer palestras motivacionais.
Acredito que alguns leitores mais ortodoxos possam ter estranhado o final da história.
Mas, acreditem: Não foi por mal! Foi só pra esses fazendeiros egocêntricos, perversos e prepotentes aprenderem a não se folgarem tanto com os tantos Jós desse mundão...
Porque, minha senhora, tudo nessa vida tem limite, até mesmo paciência.
Inclusive a de Jó.

Marcadores: , , , , , , ,

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Meu querido.. Sempre sagaz e sensacional! hahaha.. Definitivamente, você conseguiu por magia na história.... Já pensou em reescrever as escrituras sagradas? hahahaha
Beijos!

2:50 PM  
Anonymous Anônimo said...

Massa! Muito bom!!! Demorou, mas o Jó finalmente acordou! Hahahahahahah!!!

Beijos!

2:25 PM  
Blogger magal said...

As velhas estórias do campo, sempre com seus finais sábios onde tira-se sempre um bom ensinamento... Deveras ilustrativas aos dias atuais.
Analogamente, vou usar da paciência de Jó, ou da falta dela, pra contar a estória de duas moçoilas, tambem dos campos distantes e altivos, muito mais pra lá do que pra cá de Campo Magro. Raquel Viera Prestes, mais conhecida como Quer, sufixo de Raquel com uma peculiaridadezinha do interior, apaixonada por Jojoca, abreviatura de João José Carlos Santos, seu vizinho esquisitão, responsavel por mostrar-lhe idéias comunistas. Um subversivo de possilgas, que carregava no sobrenome a admiração de seu Pai pelo "peixe da baixada". Querzinha adorava Jojoca, mas sua paixão por ele como toda boa tragédia Shakspereana não teve um final feliz, ou não, dependendo do ponto de vista.
Ao cantar do galináceo lá pelas 04:00 da madrugada, Quer, como boa filha que era ja estava de pé, com o balde numa das mãos, e na outra um cabresto pra amarrar as patas de Mimosa, velha amiga da familia e responsável pelo cálcio da trupe em seu leite quente e gordo que ainda ousava em doar todas as alvoradas. Mimosa e Quer, praticamente tinham se criado juntas, sabiam tudo uma da outra, trocavam confidencias e uma delas acompanhou de perto a paixão de Jojoca por uma delas. Quer, abismada, nao entendia como Jojoca a usava apenas para ter contato com a vaca, mas isso depois de perder-se alucinadamente pela verve esquerdistas de Jojoca, que olhava àquela média propriedade ruaral como um palco certo pra introduzir seus ensinamentos cooperativistas e de reforma agrária. Mimosa, tímida e laconica, como sempre, avistava tudo sobre uma mascara fisionômica de quem sabe o que quer, mas não dava o braço a torcer.
O tempo passou no mato, os militares vieram e Jojoca guardou à eternidade, em sua própria carne as marcas do tempo da opressão. Mimosa parou de dar leite e deu carne uma vez por todas. Querzinha morreu de desgosto.
A paciência das forças armadas tinham acabado, não ficou ninguém pra contar história, até que se prove o contrário...

6:59 PM  

Postar um comentário

<< Home