sexta-feira, fevereiro 20, 2009

A noite fatídica

Mais uma tentativa para a revista Piauí. Desta vez a frase ficou no finalzinho (em negrito).
Agora é ter fé. No mais, segue abaixo o despropósito da vez.

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Certos diálogos são assaz perigosos.
Normalmente iniciam-se com raciocínios aparentemente inocentes, e embora nunca carreguem grandes pretensões, vez ou outra acabam por alterar o status quo do universo de forma inexplicavelmente abrupta, distorcendo a ordem natural das coisas de tal maneira que a ciência moderna ainda não pôde explicar. Einstein, se vivo, chamaria de urucubaca.
Eles eram casados há certo tempo, não tinham filhos, e viviam sob ares de relativa harmonia.
Em tempos modernos, cabe esclarecer: Trata-se aqui de um casal heterossexual, do tipo standard.
Havia perspectiva de domingo, e o astro rei brilhava altivo.
Como procedimento de praxe para sábados ensolarados, ao raiar do dia (que aos sábados acontece em meados das onze horas) ele telefonara para alguns confrades, a fim de convocá-los para o que paradoxalmente chamavam de “churrasquinho com bate-bola”, um eufemismo dos mais ordinários, por óbvio: A dieta líquida era a única modalidade religiosamente respeitada nestes eventos.
Ela normalmente aproveitava a deixa para fazer compras no shopping.
E a vida seguia na mais corriqueira serenidade, até que o acaso, esse maroto, entra em cena:
- Querido, já pensou no que vai fazer com os sessenta minutos que vai ganhar hoje à noite?
- Como? Sessenta minutos? Bebeu, sua doida?
- Hoje acaba o horário de verão, seu grosso!
- Beleza! Uma hora a mais de sono!
- Estava pensando em outra coisa... Tem uma loja nova de calcinhas no shopping e eu vi uma cinta-liga linda...
- Cinta liga, é? Já vi tudo. Negócio fechado. Meus sessenta minutos são seus.
E assim ela se entreteve pelo resto do dia. Fez esfoliação na pele, depilação a laser, passou os mais curiosos cremes nas mais curiosas partes do corpo, tomou banhos relaxantes com óleos aromáticos, fez um tratamento capilar completo e arrematou a obra com um vestido preto cujo tamanho deixaria Hugh Hefner corado.
Ele tomou um banho. Pensou em cortar as unhas do pé, mas ficou com preguiça.
O alvoroço das conversas exaltadas e do tilintar dos copos deu lugar ao sossego. Todos já haviam ido embora, e a paz reinava na casa.
Ele a esperava na cama, enquanto ela caprichava nos últimos retoques na maquiagem. Levou mais meia hora, mas o resultado ficou sensacional.
Sua entrada precisava ser triunfal. Entrou no quarto ao som de uma música envolvente, dançando graciosamente equilibrada nos saltos altíssimos, que realçavam ainda mais as suas belas pernas. O ambiente era sutilmente iluminado por velas e perfumado com incensos.
Eis então que ela percebe um ruído estranho no ambiente. Extravasando inocência, ela ainda chega a pensar que o som do quarto pudesse estar com defeito.
Só percebeu o ocorrido quando viu ele roncando sob o travesseiro babado. Roncava genuinamente. Dormia o sono dos justos, esparramado na cama como uma porca que amamenta seus filhotes, fazendo, inclusive, ruídos característicos.
Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite.
E foi exatamente durante seus sessenta minutos extras, devorando um pote de sorvete, que ela decidiu largar suas aulas de aeróbica. Ele não merecia.

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6 Comments:

Blogger Rafael said...

Que alívio! Ainda bem que as mulheres preferem sorvetes à outros homens... Por um segundo achei que ela faria dele um bovino.

Mas ela foi muito exigente com ela mesma. Sinceramente, ela não precisava fazer tudo aquilo. Bastava aparecer!

Quem sabe um bicampeonato, hein?

Abraço!

11:31 PM  
Blogger Madalena said...

Estava mesmo na hora dela entender que precisa fazer as coisas para si!

1:50 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ilustríssimo.. estou sentindo cheiro de bicampeão piauiense hein =P.. muito bem colocado a importância do sorvete nas relações interpessoais..hahahahaha
Beijos!

9:41 PM  
Blogger cristal muniz said...

Taí, um sorvete iria bem agora, fiquei com vontade.

11:13 PM  
Blogger Felipe "Tito" Belão said...

o sorvete é fundamental... depois da beleza... aquela coisa toda das feias nos desculparem.

11:22 AM  
Anonymous Anônimo said...

Bravo!!!

E ó, tem selo pra ti lá no blog, viu? Passa lá e pega!!!

Beijos!

1:56 PM  

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