quinta-feira, abril 19, 2007

Pouco miolo, muito tempo.

Começava mais um dia. O clima nevoento encobria a beleza do crepúsculo matutino, de modo a tornar o céu mais sombrio do que de costume, naquele horário. Para muitos, apenas indícios de mais um dia depressivo e cinzento. Mas não para ele. Para ele, era só mais uma oportunidade de superação.
No auge de seu meio século de vida, ainda tinha a disposição de um garoto. O segredo? Segundo o próprio, era poder trabalhar no ramo que mais gostava: o jornalismo.
Sempre teve o jornalismo como uma paixão incondicional, e em todos os seus vinte e sete anos de carreira, considerou esta profissão como a mais nobre, digna e importante entre todas as outras. Seu argumento era de que o jornalista, ao contrário de qualquer outro profissional, era um entendedor das coisas universais. Uma espécie de sábio multidisciplinar, distribuidor de conhecimento factual à população ignorante, sempre sedenta por informação. Em resumo, uma espécie de semi Deus da informação.
Porém, eis que das trevas surge a luz! Num momento transcendental, um feixe de claridade atravessa a janela e ilumina sua face. No instante seguinte sente seu corpo mais leve, a ponto de quase levitar. Não tem a menor dúvida de que, depois de tanta espera, o momento da sua vida havia chegado. Definitivamente, sua alma foi iluminada.
Ansioso por transmitir a notícia aos seus discípulos, chega à redação do jornal afoito e ofegante. Na mesma hora, pede que sua secretária chame toda a equipe para uma reunião urgente, e que prepare o equipamento de tele-videoconferência para que o pessoal da matriz também participe da reunião. Seu cargo de chefe de redação sênior lhe dava esse tipo de prerrogativa.
Houve um alvoroço geral. Alguns estagiários chegaram a fugir do local de trabalho, com um pensamento em mente: “será que descobriram tudo?”. Alcebíades, o responsável pelo almoxarifado, teve um princípio de ataque cardíaco quando soube que também foi convocado. Boatos de que haveria um grande corte de pessoal se espalharam por toda a empresa.
Numa mistura de receio e curiosidade, todos se aglomeraram na espaçosa sala de reuniões, nunca antes tão lotada.
Com um esforço quase sobre-humano para conter a emoção, começava ali sua pregação de inspiração divina.
Após a reunião, todos estavam visivelmente atordoados pela novidade, embasbacados pela ignorância do passado, e emocionados por serem os primeiros a receberem esta iluminação jornalística. Foram assim, um a um se retirando da sala, cabisbaixos sob um silêncio de total resignação.
Era verdade. Ele estava certo. Certo não. Inundado de razão. Aquilo não podia continuar assim.
De tal modo, a partir deste dia memorável, a expressão “risco de vida” foi completamente abolida do meio jornalístico, sendo sumariamente substituída por “risco de morte”.
Não sei se a história foi exatamente esta. Mas posso afirmar categoricamente, que certas situações do meio jornalístico me deixam assombrado.
Não que a expressão “risco de morte” não seja suficientemente clara, ou que “risco de vida” me pareça errado, ou ilógico. Até porque, até que se prove o contrário, o risco será sempre inerente à vida.
O que realmente me assombra, e me faz duvidar da capacidade de discernimento do meio jornalístico e da população em geral, é a total inutilidade deste tipo de discussão. Corre-se do nada a lugar nenhum, e regozija-se ao final da jornada.
E este é só mais um caso. Houve também o deputado (e padre) paranaense, que propôs um projeto de lei para substituição do substantivo “aluno” por “educando”. O argumento do ignóbil foi uma origem etimológica duvidosa (uma palavra latina, usando o prefixo de negação grego “a”) que afirma que a palavra “aluno” tenha se originado da expressão “sem luz”.
Se o mundo em que vive esse pessoal, fosse realmente o mundo real, teríamos que pensar também na origem da palavra “coitado”, ou na expressão “pois não”, entre tantos outros exemplos da língua portuguesa. Em resumo: morrer-se-ia louco, antes de se corrigir tudo...
De qualquer maneira, às vezes me flagro tentando imaginar os motivos que levam a estas divagações tão ignaras... Alguns, mais exaltados, suspeitam de conspirações de dominação global, iniciando-se pela criação de um tipo de “Newspeak”, nos moldes Bigbrothernianos (neologismo meu) de George Orwell.
Eu já penso em outras razões, bem menos dramáticas. Poderia ser, por exemplo, o abuso de drogas pesadas na juventude, alguma doença psicótica oculta, ou algum tipo de estupidez coletiva inconsciente que assole o país. Mas dentre todos motivos, um se destaca pela sua peculiaridade: O excesso de tempo nas mãos.
Aproveitando o ensejo, gostaria ainda de que deixar a todos um recado importantíssimo: Muito cuidado com tudo que fazem ou deixam de fazer!
Porque, minha cara senhora, infelizmente o tempo é como a virgindade: Uma vez perdido, nunca mais se recupera.

Castor.