domingo, setembro 28, 2008

Movimento Anti-Atrofia Hepática*

É sempre a mesma história todo final de semana: João Paulo ouve o mesmo sermão da mãe, vê o olhar de reprovação da mesma tia-avó, escuta a vizinha mandando a família se apegar a Deus e lá está mais uma corrente de oração em mais um sábado de confraternização etílica junto com o pessoal do escritório.
Sempre antes das 20 horas, Dona Mariluce se joga aos pés do filho e implora para que ele pense no fígado, outrora tão vermelhinho e sorridente como um daqueles cartões smile.
Quase todo domingo, Luís Gustavo, depois de ter tomando um porre, acorda de cueca, esparramado no sofá, com o mesmo olhar de “ressaca introspectiva,” enquanto ouve o mesmo sermão de Dona Marlene.
Mas, ora essa, nós somos aquilo que fazemos repetidamente. Excelência, então, não é um modo de agir, mas um hábito.
Quando Aristóteles (Ari, para os íntimos) proferiu esta grande máxima da filosofia, nunca imaginaria que tal citação, sem maiores pretensões artísticas, se tornaria uma verdade etílica universal. Afinal, o fígado, tal qual qualquer órgão do corpo humano, carece exercícios cotidianos a fim de apresentar um bom desempenho.
Assim como aquele tio de meia idade que, no auge do mais familiar dos churrascos de domingo, se escala pra pelada da gurizada a fim de “fazer bonito” relembrando a saudosa época em que jogou de volante nos áureos tempos do combate Barreirinha (quando era conhecido pela alcunha de “Zezão quebra-osso”), e que, irremediavelmente acaba, após alguns (poucos) minutos de profunda humilhação, por ser hospitalizado às pressas com uma torção no joelho esquerdo, uma hérnia de disco, e um princípio de parada cardíaca, as atividades de devassidão (leia-se aqui bebedeira) devem ser devidamente exercitadas. Como manter um fígado funcionando devidamente se você não o faz trabalhar?
A bebedeira de final de semana não é só mais um ato mundano, não é apenas uma forma da secretária quase aposentada e reprimida fazer um striptease em meio ao pessoal do escritório. A bebedeira é medicinal! Terapêutica!
Porém, evidentemente, a não ser que estejamos na Sibéria (neste caso, recomenda-se vodka sem gelo, a não ser que esta já tenha virado gelo, que, não se havendo alternativa, pode ser facilmente comido), obviamente as condições normais de pressão e temperatura hão de ser respeitadas.
Muito embora a palavra “limite” enseje um significado tanto quanto subjetivo quando não empregada para fins matemáticos, principiantes devem se portar como tais, e, a fim de não terem seus currículos vergonhosamente maculados, até mesmo antigos medalhistas devem conservar certa parcimônia em questões etílicas, ao menos quando já desabituados ao mundo de Marlboro.
Tudo isso para que, ao final da empreitada alcoólica, dois martinis não acabem fazendo você se sentar no chão do banheiro e chorar copiosamente enquanto interpreta os maiores sucessos do Roupa Nova, um pouco antes de acordar com a maior ressaca do mundo, em local incerto e não sabido.
Enfim, isso e mais todas aquelas coisas que fazem parte do incerto conjunto de coisas que não deviam acontecer, mas que, acredite: acontecem nas melhores famílias. Nas piores famílias, então, nem se fala...

*Texto escrito em parceria com uma jovem que responde pelo nome de Maíra, é tão albina quanto notável, escreve num blog cujo endereço é http://vidaemposts.wordpress.com/, bebe Bacardi Apple sem gelo (entre outros), e presta consultoria no ramo de aleatoriedades a este que vos escreve.

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segunda-feira, setembro 22, 2008

CID A083

Certas doenças, muito embora não fatais (pelo menos na forma standard), possuem a surpreendente capacidade de aniquilar qualquer vestígio de dignidade humana.
Um exemplo típico é a diarréia.
Dois dias de infortúnio, e a única coisa que ainda me resta totalmente sólida é o caráter, e quem sabe uma ou outra partezinha da moral, mesmo que deveras abalada.
No mais, esvaem-se as impurezas liquefeitas ou então de consistência pastosa, quando muito.
Como se não bastasse a perda de dignidade intrínseca à atividade em questão, como assaduras cinematográficas em regiões que não conhecem o brilho do astro rei ou proeminentes marcas de freada na retaguarda de peças íntimas, como não poderia deixar de acontecer a nós, os Barbosas (vide copa de 50), sempre hão de surgir novos empecilhos de ordem conspiratória.
Nesta última segunda feira (o que poderia se esperar de uma segunda-feira?) alguns chamados da natureza de caráter emergencial durante a madrugada me fizeram concluir que a possibilidade de trabalhar e manter as calças limpas simultaneamente seria muito improvável. Resolvi, portanto, enforcar a labuta e ir ao médico, afinal, havia o plano de saúde da empresa. Hospital chique, metido a bacana... O que poderia dar errado?
Foram quase três horas esperando o maldito médico. As duas primeiras horas foram até que foram aceitáveis... A última meia hora pareceu uma eternidade.
A pior parte foi ler as inúmeras plaquetinhas nos balcões de atendimento descrevendo a missão, os valores e as diretrizes do hospital, que eram algo do tipo: ser o melhor prestador de serviços médicos do sul do mundo, amar ao próximo como a ti mesmo e acabar com as doenças universais, respectivamente.
No final do longo período de espera, já desejava, do fundo do meu coração, enfiar gentilmente a carteirinha do plano de saúde junto com a tal plaquetinha no reto da atendente do balcão.
Àquelas horas eu já me arrependia amargamente por não ter ido a um posto de saúde qualquer do SUS. Afinal, se for pra ficar horas esperando, que seja num posto de saúde, onde eu não seria a figura mais grotesca do lugar, mesmo que completamente cagado.
Mas eu agüentei. E foi exatamente entre a vontade de correr pra "casa de força" e o medo de perder a minha vez no atendimento e ter que esperar mais três horas, que residiu minha bravura. E então, posto que o sol brilhe até pra cachorro (a sombra é que aparece só pra um ou outro), eis que chega minha vez.
Para minha sorte (sorte?), a consulta médica foi rápida. Durou apenas o tempo necessário para se ratificar o óbvio: A chave era hidratação e reconstituição da flora intestinal. Assim, o doutor receitou algumas amenidades e o resto caberia à própria natureza. Definitivamente, um diagnóstico fenomenal. Coisa de gênio.
De qualquer forma, a consulta foi útil para dois propósitos: Certificar-me de que não possuía nenhuma doença bizarra que poderia me matar em poucos dias e que um clínico geral de pouca experiência (como o médico que me atendeu) dificilmente diagnosticaria; e conseguir um atestado para amenizar meu saldo devedor no “banco de horas” da firma (como se o “banco de dinheiro” não fosse mazela suficiente).
De atestado em punho e já com princípio de câimbra no esfíncter, fui levado de volta para o conforto do lar. Durante o percurso, feito, aliás, em tempo recorde por minha dulcíssima respectiva (Claudinha, que devia tentar entrar no ramo de pilotagem estilo “velocidade na terra”), tive até alguns pensamentos eróticos que envolviam o vaso sanitário e o assento da privada. Mas, como de costume, no final tudo se resolveu.
Cheguei ao banheiro em tempo hábil e a ordem natural das coisas foi seguida. A cerâmica agüentou a pressão, e essas horas o resultado da operação deve estar navegando sob ventos tranqüilos pelo lago do parque General Iberê de Mattos (vulgo parque Bacacheri).
Felizmente, tanto minha dignidade quanto o asseio do banco do carro da Claudinha foram devidamente preservados.
Amém.

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quarta-feira, setembro 10, 2008

Fim da humanidade: Um conto de quase-ficção.

Prefácio:
Sinto-me um pouco entediado com o mundo.
De repente, frustrado pela existência insistente dessa tal de humanidade.
Afinal, infelizmente, quiçá por puro sarcasmo do criador, o dito cujo acelerador de partículas acabou não engolindo a Terra...
E assim, como a tal geringonça não cumpriu seu papel, resolvi instituir o apocalipse por conta própria.
Talvez movido por um romantismo jocoso, que me é tão peculiar, escolhi a hipótese de “doença contagiosa”.
No mais, segue a sucinta obra de “quase-ficção”.
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A moléstia não mais os permitia sair de casa. Assim sendo, não havia como saber a real extensão do surto.
Há pouco tempo atrás, mesmo que já contaminados, ainda conseguiam andar pelas ruas mais próximas.
Agora, não havia mais como. Simplesmente, não era mais possível.
A televisão e o rádio já não transmitiam nada há dias. Semanas. Meses.
A doença já teria alcançado os limites da cidade? Do país? Ou então, já teria contaminado toda a humanidade?
Não havia como sair dali, logo, não havia também como saber...
Agora restava a eles apenas esperar por ajuda.
Porém, a ajuda de quem, se praticamente todos estavam contaminados?
Sabiam que talvez tal ajuda não fosse nem mais chegar... Àquelas horas, a esperança era escassa.
E, dada a patologia da doença, a situação agravava-se em progressão geométrica.
Alimentos e demais artigos de primeira necessidade chegavam ali apenas através de alguns poucos entregadores, que, mesmo indispostos pelo mesmo mal, ainda arriscavam-se a sair da toca. O mundo tornara-se um caos completo.
Sem nenhuma razão aparente, mulheres abortavam suas crianças prematuramente, e até então nunca se havia registrado tantos casos de morte súbita e suicídios.
A intolerância, sempre tão difundida pelo planeta, tornara-se a única regra de conduta.
Era o fim do reinado do Homo Sapiens Sapiens.
Já prevendo o pior, enfurnados no sótão da casa, a única diversão do casal era relembrar momentos tranqüilos de outrora, que, por alguma razão, insistiam em permanecer retidos em suas débeis retinas.
Em especial, tinham muita pena do pobre rebento, que, no auge dos seus três anos de vida, não escapara do contágio. Desde muito cedo já apresentava os mesmos sintomas.
Como muito bem sabiam, crianças tinham uma maior resistência a tal enfermidade. Porém, a ineficiência de quaisquer tratamentos somada à tenra idade do guri insistia em ceifar qualquer esperança dos seus espíritos, já devidamente desenganados.
Arrependeram-se, mesmo que tardiamente, por não terem seguido as recomendações de uns poucos visionários que, tal qual profetas do apocalipse, tentaram desesperadamente advertir à multidão cega e ensurdecida, que, se tomadas algumas precauções, crianças de colo ainda poderiam ser salvas.
Mas, como de praxe, em nome da razão pura, tais sábios foram sumariamente ignorados pelos demais, e, sem maiores questionamentos, foram tidos como loucos ensandecidos.
Agora restava apenas esperar pelo pior.
Vírus ou bactérias poderiam ser controlados. Enchentes, furacões ou terremotos, por mais terríveis que fossem, poderiam deixar sobreviventes como sementes para uma nova civilização. Até mesmo guerras atômicas poderiam deixar resquícios de humanidade.
Aliás, todas estas e tantas outras possibilidades apocalípticas já haviam sido suscitadas em obras de ficção.
Contudo, não havia sequer como desconfiar de uma possível peste de ordem psíquica. Espiritual, por assim dizer.
Não havia como prever que um mal tão sutil e corriqueiro pudesse alastrar-se àquele ponto.
Num passado recente, acreditava-se até que tal problema seria uma defesa natural, e, portanto, inofensiva.
Alguns faziam até mesmo questão de difundir tal conceito. Afinal o mesmo, em certas circunstâncias, tornava-se algo extremamente lucrativo.
Porém, em grande escala, o problema cresceu descontroladamente. Tomou forma de pandemia, e alastrou-se inexplicavelmente. Fez inúmeras vítimas.
Todos haviam se contaminado.
Na realidade, nem todos. Um ser humano derradeiro ainda restava são, quiçá na ânsia de curar os demais. O último idealista, talvez.
Todavia, como muito bem se sabe, idealismo é produto perecível, e, como não poderia deixar de ser, este também pereceu.
A última esperança da espécie, ao ver a real amplitude da situação, passou a compartilhar os mesmos sintomas.
Sua mão começou a suar, e um calafrio inexplicável percorreu sua espinha enquanto seu rosto ia perdendo a cor. Uma angústia paralisante o tomou por completo.
E foi assim que este último idealista, tal qual o resto dos seus, de forma arrebatadora, inexplicável e implacável, provou do grande mal que todos há muito sofriam: Pela primeira vez, sem qualquer razão plausível, também sentiu medo.
Medo de todos e de ninguém.
Medo de tudo e de nada.
Medo crônico e agudo.
Tudo de uma vez só.
Em suma, sentiu o pior de todos os medos: O tal medo de viver.

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