segunda-feira, março 17, 2008

Pra não dizer que não falei das flores



Aparentemente, parecia só mais um crime cotidiano, como tantos outros que acontecem por aí.
Ela foi encontrada na rua, estática, com aspecto enigmático.
Parecia ainda mais amarelada do que costumava ser pela própria natureza. Tinha um amarelo tácito e convidativo.
A hipótese de crime passional só foi descartada quando a segunda vítima foi encontrada a poucas quadras do local do primeiro crime, com a mesma cor amarelada, porém mais esguia e séria que a primeira. Tinha trejeitos sóbrios e aspecto compenetrado.
A terceira vítima era extremamente parecida com a primeira: Não foi preciso maiores investigações para descobrir que eram irmãs.
Depois destas, foram confirmadas mais quatro vítimas, que embora tenham sido encontradas pelos mesmos arredores e em situações parecidíssimas, aparentemente não seguiam o mesmo padrão das três primeiras.
Duas delas ainda resguardavam um aspecto saudável e jovial: Uma foi encontrada rosada, de aparência bonita e singela. A outra, muito parecida com esta, parecia ainda mais rubra e encorpada. Cada qual com seus encantos.
As duas últimas destoavam-se completamente das demais.
Uma era pequena e pálida, de beleza serena, como quem não precisa do sol para brilhar, pois é fonte da própria luz.
A vítima derradeira parecia a mais séria de todas. Alva, triste e bucólica, tinha manchas com tons estranhamente violáceos. Ainda assim, parecia ter um curioso aspecto de contentamento.
Todas elas tinham algo em comum: Eram do sexo feminino, jovens, e esbeltas. Literalmente, na flor da idade.
O criminoso em série foi descoberto sem maiores dificuldades. Estava em casa, tranqüilo, a se deleitar pelos crimes praticados.
Não tentou negar sua autoria em nenhum momento. Pelo contrário, foi réu confesso.
Admitiu ter raptado e ceifado a vida de cada uma delas por um simples motivo: egoísmo.
Assumiu os eventuais riscos em sofrer as conseqüências de seus crimes torpes, apenas no intuito de tê-las exclusivamente para si mesmo.
Não o fez por maldade ou sadismo: Ele só queria todas ali, enfeitando sua sala.
Queria que a beleza das flores, mesmo que mortas, fossem só dele e de mais ninguém.
Em seu egoísmo insano, preferiu-as mortas para ele, do que vivas para todos.
Mas assim é a vida.
Esta é a sina das flores, que inevitavelmente perecem para serem contempladas por poucos, e que, assim como as frutas, quando furtadas ficam ainda mais doces.

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quarta-feira, março 12, 2008

Cartas aos ETs, parte III – Quando tudo começou

Continuação da carta aberta a todos os seres da nova espécie dominante que vier a habitar estes confins quando largarmos o osso, ou então, que estiverem por aqui atrás de sacanagem.Pra quem perdeu a primeira parte: http://castor-ensimesmando.blogspot.com/2007/11/carta-aos-ets.html
Pra quem perdeu a segunda parte: http://castor-ensimesmando.blogspot.com/2008/01/carta-aos-ets-parte-dois.html

Há quem diga que o homem surgiu meio assim, do nada, criado por um camarada muito sagaz, que inventou o primeiro o homo sapiens macho, achou bacana, viu que a coisa tinha potencial, resolveu caprichar, e criou a fêmea. Depois disso, por algum motivo obscuro ficou meio puto, e largou os dois nesse mundão, juntos com o resto da bicharada.
Porém, atualmente uma grande parte da rapaziada já anda acreditando num tal de Charles, que dia desses, ao sair de férias, teve uma sacada brilhante: Percebeu que embora todos os bichos costumassem nascer iguais aos demais, vez ou outra, algum acabava nascendo diferente, a ponto de nascerem alguns, de certa forma, um pouco mais iguais que os outros[1], que por sua vez faziam menos besteira, morriam menos, e acabavam vivendo mais para transmitir geneticamente suas igualdades, até que, de repente, nascia algum mais igual ainda. E assim por diante.
Desta forma Charles, este malandro agulha, sem querer, acabou por revelar mais uma possibilidade para a origem do homem: o macaco. Teve gente que não curtiu a idéia, e preferiu ficar com a primeira hipótese, por mais incrível que esta pareça (as duas me parecem incríveis, cada qual por seus motivos).
Assim, de acordo com esta segunda corrente de pensamento, que ultimamente me parece a mais coerente (embora a coerência não esteja na moda hoje em dia), o Homo Sapiens Sapiens teria passado por inúmeros outros “Homos” antes de chegar até o atual “Homo”, como o Homo Habilis, o Homo Erectus (que em nada tem a ver com as divagações anteriores sobre disfunção erétil), entre tantos outros “homos”. Algumas outras espécies de “Homos” ainda podem ser vistas por aí, saltitantes, alegres e purpurinados. Não precisa nem procurar muito.
Assim, o homem acabou se tornando um bicho muito importante, um predador intrépido que aos poucos foi percebendo que podia tirar certa vantagem da sua situação. Não sei bem como ou quando foi isso, mas imagino que a situação tenha sido mais ou menos assim:
Pedro, o homem das cavernas, ao caçar um animal de pequeno porte (que já andavam escassos pela região, ao contrário dos perigosos animais de porte médio, ou dos terríveis animais de porte grande), acabou encontrando Pedro[2], que por uma incrível coincidência, estava a caçar o mesmo animal.
Assim quando ambos perceberam a peculiaridade da situação, travaram o seguinte diálogo:
Pedro, muito mais simpático que Pedro, começa a conversa:
- Pedro, meu nobre amigo! Bom dia! Como anda Vossa Mercê neste dia tão ensolarado?
Pedro, um pouco transtornado com a situação, responde:
- Nobilíssimo Pedro! Folgo em lhe ver bem! Vou muito bem, obrigado! E o senhor, como vai? Tudo bem com as crianças, e com a sua senhora?
Após alguns momentos gastos com trocas de gentilezas entre os dois cavalheiros, conforme a situação exigia, Pedro foi direto ao assunto:
- Pois bem, distinto colega. Vejo que perseguimos o mesmo animal, e agora estamos num impasse... De acordo com o protocolo, podemos lutar até a morte, ou cortar o pobre bichinho no meio. O que o senhor preferiria?
Pedro, quiçá iluminado pelo absurdo da situação, respondeu de imediato:
- Pedro, meu caro, Talvez haja solução diversa para tal litígio: Que tal um acordo?
Pedro, num misto de curiosidade e desconfiança, retruca:
- Acordo... Pois bem. Como seria tal acordo?
Pedro, muito mais perspicaz, responde sem pestanejar:
- Façamos o seguinte: O senhor se compromete a não me matar, eu me comprometo a não lhe matar, e nós, cooperativamente, matamos um bicho maior.
Pedro, sem ter a menor idéia do que significava “cooperativamente” (afinal de contas, o conceito tinha sido inventado por Pedro naquele exato instante), mas empolgado com as possibilidades de conseguir “muita carne” ao invés de “pouca carne” (dois dias depois ele criou o conceito de “açougue”), concordou na hora.
Assim, cooperativamente, ambos caçaram vários animais de médio porte, até proporem sociedade a Pedro, um terceiro interessado, ao qual foi apresentado um contrato de adesão tanto quanto obscuro (em tal momento, Pedro e Pedro, agora já “advogados associados”, estavam criando o conceito de “estelionato”), que então, ao ingressar em tal empreendimento, possibilitou uma nova tecnologia: A caça de animais de grande porte.
A partir daí, a coisa ficou bacana, e o homem se tornou o grande predador do planeta.
Porém, engana-se quem pensa que o segredo de tudo foi apenas cooperação: Tantos outros animais, como formigas ou abelhas, já conheciam este conceito muito antes do homem.
O que nos leva a concluir, lamentavelmente, que ser grande e mau também ajudou bastante.

[1] Como já diria George Orwell.
[2] De acordo com o brilhante filme “Na idade da pedra” (RRRrrrr!!!, 2004), todos os homens se chamavam “Pedro” nesta época. A seguir, alguns comentários sucintos sobre o filme: é francês e me fez rir.

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quarta-feira, março 05, 2008

Nos bastidores da história - parte I: Moisés

Moisés é chamado às pressas.
Quando chega percebe toda aquela arruaça, e ao ver o ocorrido, pronuncia em tom profético:
- Puta que pariu, hein, Severino!! Mas que bosta!
Severino, o aspone, não sem antes resmungar algo próximo de “isso que ele não viu antes da gente limpar o mais grosso...”, responde:
- Pois é, Dotô Moisés... Acabou que deu merda...
Sob os olhos acusadores de todos, e após uma breve alisada na barba, Moisés retruca, com um tom um pouco mais tranqüilo:
- Pois é... Eu falei que ia dar galho, moçada... Mas agora já era.
Interrompendo o velho sábio, Wilberson, o Office-boy, um jovem não muito sagaz, mas sempre atento, retruca:
- Podemos dizer que já estava desse jeito quando chegamos aqui... O que acham?
Moisés, que até então se mostrava sereno, bradou em tom ameaçador:
- Porra, Wilberson! Já falei pra você, energúmeno! O chefe é onipresente, onisciente, onipotente, e coisa e tal! Não vai rolar de enganar o cara! Ou então vai ficar pequeno pro nosso lado! Ninguém tem alguma outra idéia?
Todos se calaram. Eis então, que ecoa uma voz convicta no meio da multidão, quebrando aquele silêncio tão constrangedor:
- Cola com durepox, mané!
Em meio a xingamentos, risadas, tapas na nuca e gritos de “pedala!”, o infeliz sujeito foi devidamente calado.
Após o breve alvoroço, o silêncio embaraçador foi retomado, sendo quebrado novamente apenas pelo velho ancião, que proclamou, para espanto de todos:
- Façamos assim... Caso alguém perguntar alguma coisa, falamos que o mar se abriu e nós passamos, e fica tudo por isso mesmo... Procurem não entrar em detalhes, que ninguém vai desconfiar de nada, beleza? Mais alguém viu alguma coisa?
Uma voz anônima responde prontamente:
- O cara da guarita viu tudo! E agora?
Moisés, que dentro daquela velha carcaça encobria um espírito jovial e astuto, respondeu sem titubear:
- Larga duas garoupas na mão do cara, e diz que é pra ele ficar na miúda. Estamos acertados?
Em meio ao murmúrio coletivo, Moisés se retirou do local pra enrolar mais um cigarrinho, a fim de tentar fazer contato com o chefe.
Nada mais foi dito, nem perguntado.
Os presentes acataram unanimemente a sugestão de Moisés, o cara da guarita levou seus duzentos mangos pela boca de siri, e tudo parecia estar resolvido.
No entanto, ninguém conseguia parar de pensar: Como será que iriam contar toda essa história dali a uns 3000 anos?

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