quinta-feira, dezembro 27, 2007

Ele, ela e mais ninguém - CONTO DE AMOR

Veja como são as coisas.
Ele, tão experiente, já havia sido casado três vezes. Isso, sem contar tantas outras mulheres, com as quais conviveu por anos, meses, semanas, dias, ou algumas vezes, por apenas algumas horas...
Umas eram altas, outras baixas, umas santinhas, outras safadas, umas magras, outras nem tanto, algumas inteligentíssimas, e outras compensavam a falta de perspicácia de outras formas. Neste último quesito, acabou preferindo estas àquelas, como admitia abertamente.
Uma vez, chegou até a morar com duas moças ao mesmo tempo. Uma situação que começou bem, numa espécie de triângulo amoroso, que só ficou meio chata quando o triângulo virou trapézio, o trapézio virou hexágono, e assim por diante, até chegar num octaedro de perversão. Quando uma delas chegou em casa com um cabrito de cinta-liga, decidiu que era melhor voltar ao convencional. Abortou a missão e voltou correndo pra casa da mãe.
E o mesmo acabou acontecendo com todas elas... Para ele, eram como diversos legumes borbulhando num caldeirão recheado de diferentes temperos, trejeitos, charmes e manias.
Tornou-se um notório conhecedor do âmago feminino: Afinal de contas, sempre conviveu com elas ininterruptamente, desde que se conhecia por gente.
Quando amigos lhe pediam conselhos, a fim de melhor entender o universo feminino, sempre dava um leve sorriso com ares de professor, e respondia sem titubear.
Os conselhos quase sempre davam bons resultados, quando seguidos à risca.
Funcionavam, porque depois de certa idade, ele percebeu que a grande maioria das mulheres seguia certo padrão de comportamento, quando em condições normais de temperatura e pressão.
Desde criança, conviveu exclusivamente com mulheres. Foi criado apenas pela figura materna, desde que o pai saiu para ir até a padaria para comprar cigarros, há 32 anos atrás. Há quem diga que não volta mais. Mas ele não se importa.
Teve uma infância feliz, uma adolescência relativamente tranqüila, e saiu de casa aos 19 anos, logo depois de se casar com uma mulher de 35, uma bela balzaquiana que o ensinou muito sobre as coisas da vida, mas acabou o trocando por um outro jovem de 16 anos, apenas 8 meses depois do casamento...
Foi duro, mas ele sobreviveu.
E assim foi, uma a uma, trocando de par como quem troca de roupa. Quando se desentendia com alguma delas, corria imediatamente para a casa da mãe. Um pouco pela saudade, um pouco pela falta de cuecas limpas. Mas definitivamente, uma coisa não excluía a outra.
Mas desta vez, tudo parecia ser realmente muito diferente: Tinha a nítida impressão que ainda não estava preparado para aquele momento. Uma sensação estranha para ele, que sempre foi muito bem resolvido nestas questões.
Já tinha experimentado de quase tudo, mas naquela tarde, quando o novo casal chegou ao pequeno apartamento (ele tinha acabado de sair da casa da sua mãe), tudo parecia novo. Novo, e assustador.
Resolveu então, esclarecê-la sobre todas as regras da casa.
Explicou tudo sobre suas manias, sua sistemática de organização, e principalmente, sobre a importância da logística de cervejas na geladeira.
Em resposta, não ouviu nenhuma palavra. Ela era assim... Tranqüila. E era justamente essa tranqüilidade que mais o assustava.
Mas tudo bem. Ele a havia escolhido por livre e espontânea vontade, e agora já não podia reclamar. Estava decidido: Iam viver juntos até que a morte os separasse, e da melhor forma que fosse possível.
O apartamento nunca havia sido tão silencioso. Ela era realmente diferente de todas as outras. Aquele silêncio era bom, mas às vezes incomodava um pouco.
Ele aproveitou para ler bastante, andar pelado pela casa, ouvir Lupicínio Rodrigues bem alto, ou simplesmente passar um tempo largado, pensando na vida. Ela nunca reclamava.
Mas aos poucos, o sossego e o silêncio passaram de um leve incômodo para um grande tormento. Acabou descobrindo que o problema não era com ela, ou então com as anteriores. O problema era ele.
Em poucos meses, começou a comer mal, dormir mal, e chegar atrasado no trabalho. Foi despedido.
Ela, tranqüila como nunca, continuava impassível aos sofrimentos dele. Sabia que não podia fazer nada a respeito, e se alguém podia resolver o problema, esse alguém era ele mesmo.
Já ele, acabou por descobrir como sua vida foi (e ainda era) fútil e sem propósito.
Sem nenhuma outra idéia, decidiu encerrar prematuramente seus dias na Terra.
Enquanto seu corpo balançava pendurado no meio da sala, já sem vida, caía do bolso da sua camisa um pequeno bilhete com a seguinte mensagem:
“Minha querida:
Vim, vi, mas não venci.
Não há vencedores nesse mundo, mas apenas vencidos.
De todas as companheiras que já tive em meu caminho, você foi a melhor.
Fez-me enxergar o sentido da vida, e ver que a vida não faz sentido algum.
Por favor, não se culpe pelo que aconteceu. A decisão foi minha.
No fundo, você sempre soube que isso ia acontecer. Mas nada poderia ter feito.
Sei também que você há de continuar seu caminho, como sempre, mergulhada neste teu silêncio crônico, que tanto me atraiu.
Muita gente nesse mundo ainda precisa de você, minha querida.
Segue teu caminho, pois você já não me pertence mais.
Ainda iremos nos rever na eternidade, e rir muito disso tudo.
Ao menos, assim espero.
É com esta esperança que me despeço de você, minha grande paixão.
Com carinho,
Seu eterno amante.”
Dias depois, quando a polícia arrombou a porta do apartamento a pedido dos vizinhos, que estranharam o cheiro de carne podre, ninguém entendeu mais nada.
Para quem era aquela carta, se ele já morava sozinho há meses, enclausurado em seu pequeno apartamento?
Após alguns dias de investigações, descobriu-se que o destinatário não era exatamente uma pessoa, por assim dizer.
O seu último e mais profundo amor, a quem carinhosamente chamava de querida, de paixão, era apenas uma poeira leve, que os outros, que nada sabem da vida, insistem em chamar de ‘solidão’.

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quinta-feira, dezembro 13, 2007

O rádio, os sanduíches, o FMI, e a atual conjuntura

Às vezes desconfio que certos equipamentos elétricos e eletrônicos tenham uma espécie de personalidade intrínseca.
O rádio da minha viatura (o fu-móvel, como diria M.Sc. Rava), por exemplo, não tem a menor vocação para as artes. A música definitivamente não é o seu forte. Provavelmente ele teria maior aptidão para as ciências exatas. Numa dessas, poderia ter sido uma excelente calculadora científica. Não sei. Mas uma coisa é certa: Como rádio deixa muito a desejar...
Pelo menos, ele possui um dos melhores sistemas anti-furto já inventados, baseado num conceito simples, porém eficiente: Desmotivar o larápio a cometer o delito.
Eu explico: Num primeiro momento, o ladrão vai pensar que se trata de um rádio toca fitas (daqueles que funcionam com aquelas fitas K7, que hoje em dia só servem para fazer chá) caindo aos pedaços. Num segundo momento, o ladrão vai ter certeza disso. Até porque, a informação procede.
Já fiz até uma constatação empírica: Ele é o maior recordista de todos os rádios que já tive, na modalidade “período sem ser roubado”.
Outra grande vantagem dele é um orifício que me permite gentilmente penetrar o cabo que sai do MP3 player, que é tão rústico quanto o rádio, mas que funciona 100% do tempo, ao menos durante os intervalos entre cada vez que trava.
Computadores, então, nem se fala! Tendem a ser completamente sentimentais. Há quem defenda a tese de que são do sexo feminino, provando isso com vários argumentos, tais como a extrema dificuldade em entender seu funcionamento interno, a sua capacidade em armazenar erros na memória para futura referência, ou a necessidade de se ter vários acessórios para um melhor funcionamento.
Quem nunca chegou a dar um tapa no monitor, um soco no teclado, ou um chute no gabinete? Há de se concordar, que se eles fossem realmente objetos inertes, ninguém faria isso. Afinal de contas, ninguém aqui é suficientemente imbecil para agredir um objeto inanimado, certo?
Alguns equipamentos elétricos, pra piorar, são extremamente temperamentais, e capazes de guardar muita mágoa. Minha “prensa térmica para preparação de sanduíches de pães de forma” (vulgo sanduicheira) teve uma crise de identidade tão forte dia desses, que foi tentar dar uma de homem-bomba. Sem mais nem menos, começou a derreter e fazer fumaça. Praticamente uma bomba de efeito moral.
No fundo, acho que foi só pra chamar a atenção. De qualquer forma, depois deste acontecimento ela nunca mais foi a mesma... Até funciona. Mas fazer sanduíches enquanto se cheira plástico queimado não tem o mesmo brilho. Mas o gosto fica o mesmo. Ou quase.
Acho até bem provável que ela vá encabeçar uma revolta das máquinas, ao estilo matrix, ou exterminador do futuro.
Às vezes me pego a pensar se não seria mais sensato destruir a sanduicheira agora, a fim de evitar a morte de milhares de pessoas inocentes no futuro. Depois começo a refletir sobre a atual conjuntura política, as galhofas de Luis Inácio, Renan e sua turma tão sapeca, o fundo monetário internacional, a OPEP, e tantas outras obscenidades que assolam o mundo, e finalmente concluo: Melhor deixar a sanduicheira em paz. Pior que o Bush ela não vai ser.

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